terça-feira, novembro 28, 2006

Non Troppo

A presente recordação é Ficção.

É dia de segredos.

A entrada fazia-se pela 1 da manhã na Rua dos Caetanos ao Bairro Alto. E mais não digo...para não comprometer. Shhhh! (Baixinho).

Recordo as noites no Conservatório: as sombras que ousavam valsejar-nos. Deslizavam enlouquecidamente nas paredes de corredores sombrios, gelados, à semelhança de uma valsa entre desconhecidos. Tectos altíssimos de perder a vista, subscrevendo a nossa visão, na mudez. O busto de Beethoven segredava as notas certas.

Recostava-me sobre o palco sentindo o suspiro inebriando-me a pele, envoltura do espírito. O mítico Fantasma do Conservatório pregava-nos as melhores partidas do Salão Nobre. Seguia-se a sala dos defuntos (sala de pianos estéreis, sobre os quais adorava deleitar-me, acreditando que era possível amá-los). E pisar o sólido chão de pedra do pátio, sob o qual jaziam as sepulturas de um antigo convento que ali houvera em tempos? (O crânio de uma freira permanecia allegra ma non troppo sobre a prateleira de quarto de M).

Serões fascinantes, pelo perigo, pelo terror gerado de uma lasca de madeira quebrada. De uma singela pedra milimetricamente deslocada. Pensávamos no contraste, conscientes que a poucas portas, reinava outro mundo. Um sinal de aviso.

Pedia a M. para me levar "lá": a sala de ballet. Linda. Os espelhos dominavam a sala. Dominavam-me, controlavam cada gesto descontextualizado. Indicavam-me o caminho para "lá" chegar.

V era um homem de paixão: raro. Tinha o poder de conhecer todos os cantos da casa e acabava por voltar de braços dados com todo o equipamento passível de embelezar a Criação. O Alesis ter-se-ia mais tarde instalado na zona de captação que criámos na sala de "Cinema" para gravar a "Lua Azul". (Nota : o Conservatório agrupava então as Escolas Superiores de Dança, Cinema. Música e Teatro ).


P era a pedra mais distinta: de guitarra ao peito, sentava-se na escada e tocava para Ele. Tocava-lhe delicadamente as notas certas: notas dissonantes que permitiam que um elo de ligação se estabelecesse entre dois seres estranhos.


Por volta de 1997, o nosso reinado estava condenado: partilhávamos discretamente o "Castelo da Noite", o Hotel das Artes com guardas ao serviço do Estado.

Quando a noite se fez luz, aos passos de J, recordo-me de ti. Atiraste-te grotescamente contra mim, desmascarando cada ruga do meu rosto, de holofote traquinamente amarelado. Fugimos para nunca mais voltar.

Penso que na vida, esta história repete-se. Tenho a certeza que todos vós terão passado pelo "Castelo da Noite". Um lugar, uma época permitida que só a nós pertence, por fugazes momentos: que tem o seu triste fim, para mais tarde recordar, allegros ma non troppo.






1 comentário:

Anónimo disse...

Definitivamente tens o condão de me fazer recordar memorias que já se confundem com sonhos...terá sido um sonho? Se não foi então "dreams do come true..."
a noite ainda chora lágrimas de solidão, porque depois de partilhar momentos assim é dificil viver mais intensamente, dificil mas, tenho de acreditar, possivel...
always a pleasure, P.