A Carina, de quem já muito vos falei, é filha da D. São. A D. São, é a porteira deste prédio que mergulha no centro do meu bairro. O meu bairro é o de Campo de Ourique. O bairro de Campo de Ourique alberga muitos. Alberga a Carina. A Carina nasceu há muitos anos com o sídrome de Down. Desde que habito esta casa, a Carina espanta-me com os seus olhos de espanto. Eu espanto a Carina desde o primeiro dia que subi estas escadas, com os meus caixotes, a minha mesa, as minhas "trezentas" cadeiras. Ela viu tudo o que tinha para ver. Ela, parada no hall do prédio. Parada. Petrificada. A olhar para o bizarro ser que se mudava para o piso de cima, que era eu. A Carina sempre me olhou com medo. Muito medo. Eu bem tentei: um sorriso, às vezes mais rasgado. Outras tantas vezes, mais tímido. Nada nunca tinha funcionado. Por vezes, recordo que me esquecia das chaves da porta do edifício, Fazia-lhe sinais para que ela me abrisse a porta. E nada. Mantinha-se imóvel a olhar para mim, recuando receosamente atrás do vidro que nos separa.
A Carina,de tempos a tempos, e de manhã, emite um som estranho. Oiço a Carina no piso de baixo: um grito também ele rasgado, de quem bate à porta do dia, do dia de um mundo que reaprende todos os dias. Hoje, cheguei a casa, perto das 21h. Bati à porta da D. São, porque precisava de lhe falar. A D. São abriu-me a porta. A Carina chegou-se ao pé da mãe. Passa-lhe a perna por debaixo do braço, e abraça-me. E pede-me um beijo. Diz-me a mãe que me pede para a abraçar. Abraço e beijo-lhe a face. Nunca pensei que alguma vez seria possível ela chegar -se ao pé de mim nesta sentida entrega, com confiança. Visto-lhe a pele e imagino o inimaginável. Penso. Penso no vidro que nos separa.
segunda-feira, maio 12, 2008
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1 comentário:
Adoro este texto, adoro e adoro!
ps:porcupine tree em portugal =D
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